O Rio.
Ele estava sentado à beira do rio. Observava o mar à frente dele. Mas não era o salgado, era o pedregoso. Um mar de infinitas montanhas. O qual ele já havia mirado outras centenas de vezes pensando o que haveria do outro lado. Achando que ela estaria do outro lado.
Aquela mulher chegou novamente. Com os pés descalços, não fazia barulho ao tocar o chão, as gramíneas que ali havia. O vento roçava no seu suave vestido branco. E eram os únicos sons que ele ouvia: a água correndo no seu eixo e o tecido do vestido dela balançando e batendo-se sem um sentido. Da sua feição não se recordava bem. Aliás, essa era uma das pouquíssimas memórias de que ele não se lembrava da feição dela. Talvez porque não a olhava na face ao decorrer da prosa. Faz sentido tal hipótese, pois da voz dela ele se lembrava bem.
- O que te aflige? – ela o incitou.
- O que há do outro lado do mar.
- Mas isso é um rio.
- Refiro-me ao de morros.
Ela os mirou por longos instantes. E ficou em silêncio.
- O que te aflige? – ele, curioso, perguntou.
- Aquilo que queres do outro lado.
- É um amor perdido.
- Perdido? Ora, disse-me há pouco que está do outro lado?
Ele refletiu.
- Então não está do outro lado. – ela concluiu sozinha.
- Talvez não.
- E se estiver no final do rio?
- Como vou saber?
- Deixe de ser tolo. É óbvio: siga o curso do rio.
- Como saberei onde é o final.
- Boa pergunta.
Eles se calaram. E assim permaneceram. A água do rio continuou seguindo o seu curso. Não importava a pedra que estava no fundo, ou as que estavam aos montes na superfície. A água seguia. Simples e límpida, esperava um mar para desaguar. Ele também.
Veio então uma majestosa lepidóptera, daquelas enormes, reluzentes de tão azuis, assim, que cabem na palma da mão, e pousou descansadamente em seu joelho direito.
As pernas dele estavam encurvadas, seguradas pelos seus dois braços e antebraços. As mãos se laçavam no fim para segurar o peso. A cabeça estava erguida com o olhar longe.
Em pouco, seu olhar – e também, por conseqüência, o dela – repousou nas asas da linda borboleta. E ali ficaram admirando-a.
- Por que você gosta de borboletas? – Ela perguntou. Ao fazer isso estendeu o dedo perto do joelho dele. A beleza pequenina, sem pensar muito, foi equilibrar-se no dedo dela.
Ele sorriu antes de começar a falar.
- Porque elas são pacientes. Nascem larvas, encasulam-se e depois se transformam no que realmente são em potencial. Então, alçam vôos por longínquas terras, experimentam sabores de diversas flores, seus perfeitos perfumes. Admiro-me com o tempo que aguardam para serem felizes.
- Felizes?
- Sim, felizes. Poder alçar vôo. Mudar-se para um jardim diferente, provar de tantas qualidades, diferentes entre si. Não há defeitos, são apenas trejeitos diferentes. E sem saber o quanto aquilo vai durar. Vinte e quatro horas? Quarenta e oito horas? Setenta e duas horas? Uma semana? Quem sabe? Ela não sabe. Admiro o quão discretas são.
- Discretas?
- Sim, discretas. Batem asas contra o vento, pousam aqui e ali, vivem, e não fazem um ruído sequer. Uma vida a espera de uma felicidade indescritível, e nenhum ruído.
- Espera?
- Sim.
- Mas ela nasce, vive, depois procura um lugar para se encasular, para desenvolver seu potencial. Lá dentro do casulo sabem-se lá dos planos que passam por sua cabeça. Liberta-se e voa. Voa como se um dia não tivesse fim. Voa procurando a idéia que houve dentro do casulo. Sabe o jardim que quer e vai atrás. E ela acaba encontrando a flor que merece toda a atenção do mundo. Todo cuidado, todo carinho, toda a sua simplicidade.
Ele ficou quieto. Então ela...
- Entendeu?
- Entendi.
- E o que está esperando para seguir o curso do rio?
- O meu casulo se abrir.
Ela riu alto.
- Tolo, nós não temos casulos.
- Não?
- Não, lógico que não. Somos como um rio. Tem uma nascente pura; um curso ora desgovernado ora calmo, ora tortuoso ora reto – quase infinito; então deságua num mar. O rio falece, não é mais doce. Mas há a nascente que não pára. Novas águas vão passar. Se você entrar agora no rio que se estende a nossa frente, meu bem, jamais se banhará na mesma água daqui um único ímpeto.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que o que está perdido não está num tempo e tampouco num espaço. Está eterno dentro da dúvida que aflige teu peito. Se seguires o curso do rio, encontrarás o queres.
Ele ficou quieto novamente. Fitando a pequena grande borboleta.
Ela, a moça, tinha conhecimento da dúvida que havia dentro da mente dele e de prontidão a respondeu – antes mesmo que os dentes e a língua dele fizessem esforço para falar.
- Responda-me, o que há no horizonte?
- Mar de morros.
- Isso é um problema?
- É um grande problema. Veja! São enormes.
- Estenda sua mão em direção a eles.
Ele o fez.
- Agora tente medi-las.
- Como?
- Coloque seu polegar na altura da base deles e o seu indicador no topo. Feche um dos olhos.
- Assim?
- Isso. Agora, traga sua mão para perto de ti.
Ele obedeceu novamente.
- De que tamanho estão?
Ele sorriu.
- Veja bem, do que serias capaz por esse amor?
A borboleta saiu do dedo dela e pousou na mão dele.
- Eu? Seria capaz do pior e do melhor. Seria capaz do sonho e da realidade. Seria capaz do impossível e do possível.
- Irias até a lua e voltavas por ela?
- Sim.
- Irias buscar uma estrela para ela?
- Sim.
Ele foi arfando o peito.
- Irias atrás da maior riqueza para ela?
- Sim
- Irias atrás do maior monumento para ela?
- Sim.
- Percorreria um rio, um mar, um céu, um tempo, para chegar até ela?
- Sim.
- E se no final, ela te renegasse. Sentirias ódio?
- Não.
- Morrerias?
- Não.
- Render-te-ias?
- Não.
Fingindo espanto, ela então perguntou:
- Ora, o que farias?
- Eu viveria sozinho por ela. Só, sempre só, por ela. Só por ela.
Nessa altura da conversa ele já estava de pé. A borboleta no seu ombro esquerdo. A moça pouco atrás do ombro direito dele.
Ela colocou sua mão sobre a dele, estendeu à frente e mediu, com o polegar e o indicador dele, qual era a distância entre o presente e o futuro. Ele trouxe a mão para perto de si e sorriu novamente.
Por último ela sussurrou no ouvido dele:
- Encare a distância entre aqui e o final como só até aonde seus olhos podem alcançar. Se ainda for grande, tente medi-la conforme te ensinei. Assim terás um pequeno problema a ser resolvido bem na palma da sua mão. Agora vá, sem mais perda de tempo. Muitas águas se passaram durante nossa conversa. Você é outro. Seus erros já foram arrastados. O acúmulo de areia lá na frente está grande, mas, se fores como a correnteza que você é agora e responder à paciência que está te acompanhando, então logo o problema será resolvido. Ainda que o logo dure todo o percurso.
Ele deu o primeiro passo e não doeu.
O segundo, o terceiro, e os seguintes vieram naturalmente. Ele sorria.
Atrás não havia mais ninguém. O lobo vinha ao lado de língua de fora e o rabo abanando. A borboleta no ombro esquerdo, os valores no direito.
No peito, ela.
Sempre ela.
Só ela.
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